A Roda do Ano é parte integrante do sistema de crença wiccano, e o modelo seguido hoje por seus adeptos, nasceu de um longo processo de construção e sistematização em um contexto complexo de invenção de tradições que tem no nome de Sir James Frazer uma de suas principais influências. Frazer foi um antropólogo que em sua principal obra O Ramo de Ouro (The Golden Bough- 1992) criou a idéia de uma religião baseada na figura feminina e centrada na fertilidade como base de todas as religiões primitivas, Como Duarte nos diz:
A idéia central de Frazer era de que as antigas religiões eram cultos de fertilidade, baseados no culto de uma deusa da natureza e seu consorte, um rei-sagrado. O matrimonio entre a deusa e o rei-sagrado e o posterior sacrifício e renascimento deste, segundo Frazer, seria um mito central em praticamente todas as religiões.
É a partir desta obra, portanto, que se evidenciam os primeiros traços destas idéias que passam a ter certa repercussão. Mas as contribuições de Frazer não param ai, o mesmo, no cápitulo 62 de sua obra, nos descreve os “festivais de fogo”:
Por toda a Europa os camponeses acostumaram-se, desde tempos imemoriais, a ascender fogueiras em determinados dias do ano, e a dançar à sua volta ou pulá-las.
Costumes desse tipo podem ser traçados em evidencias históricas desde a Idade Média, e sua analogia com costumes similares na antiguidade tem fortes evidencias internas que provam que sua origem deve ser buscada em um período muito anterior a disseminação da Cristandade. Na verdade, a mais antiga prova de sua observância na Europa Setentrional é fornecida pelas tentativas feitas pelos sínodos cristãos de desqualificá-los como ritos pagãos.
E ainda, posteriormente, Frazer nos descreve seis destes “festivais de fogo” dos quais dois seguiriam o calendário celta, representando as metades claras e escuras do ano - Beltane, a metade clara e Samhain - a metade escura- e os outros quatro representariam os equinócios e solstícios, sendo o propósito destes rituais: “(...) promover o crescimento das colheitas e o bem-estar dos homens e dos animais, tanto positivamente pela sua estimulação, quanto negativamente, por evitar os perigos e calamidades que os ameaçavam...”
Duarte complementa que é a partir de então que se “alude á morte do rei-divino como uma metáfora da sucessão das estações do ano e do ciclo do plantio e da colheita: o rei deve morrer ao demonstrar a perda de suas forças ou ao fim de um determinado período, justamente para garantir (ao “renascer” ou ser substituído) sua função de fecundador da natureza.” E também afirma ser a partir de então que se cria a idéia dos festivais celtas do inicio do verão e inverno como: “ligados à fertilidade dos homens e animais durante a estação quente, e a sua sobrevivência nos tempos de inverno...”
Mesmo sendo estes fatos afirmados por Frazer sem fundamentação histórica, o professor Hutton afirma inclusive que o propósito de Frazer com esta obra era de desacreditar o cristianismo mostrando que sua mitologia era decorrente das antigas idéias do paganismo, ela teve uma enorme repercussão. O que nos é relevante, é que estas mitologias e idéias do antropólogo foram muito populares, o que acabou na modernidade por uma sistematização destes festivais de fogo e desta mitologia em uma nova religião, que desde seu nascimento moderno afirma sua ancestralidade e que se auto- afirma como bruxaria.
A Roda do Ano que vamos trabalhar é, portanto, uma sistematização moderna, e adaptada pela wicca como uma mitologia de sucessão temporal, e que engloba em si os oito grandes festivais solares e treze lunares festejados pela religião e que decorrem dessa sucessão. Os festivais lunares, chamados Esbats representam as treze luas cheias que ocorrem durante o ano, já os festivais solares, chamados de Sabaths ou Sabás, ocorrem nos solstícios de verão e inverno, nos equinócios de outono e primavera e nas épocas de transição entre estes. Deteremos-nos aqui nos festivais solares, que são: Samhain, mais conhecido como Halloween, que marca o inicio do ano, Yule, que representa o nascimento do deus, Imbolc, que representa o fogo em ascensão e marca o ritual da deusa Brigith, Ostara, ritual de fertilidade da deusa Eostre, Beltane, que representa o casamento divino, Litha, o ápice das forças solares, Lammas, a primeira colheita do ano e por fim Mabon, a segunda colheita do ano, e o fim simbólico da Roda que recomeça em Samhain.
A mitologia da Roda do Ano é complexa e pode parecer confusa, ela conta uma história cíclica, isto é, que não possui nem começo nem fim e sempre se repete, e nela estão três figuras principais, a Deusa, o Rei Azevinho e o Rei Carvalho, Janet e Stewart Farrar, em sua obra “Oito Sabás para Bruxas” refletem:
A figura do Deus-Sol, que domina os sabás menores dos solstícios e equinócios, é relativamente simples: seu ciclo pode ser observado mesmo através da janela de um apartamento de um elevado edifício. Ele morre e renasce no Natal; começa a fazer sentir sua jovem maturidade e a impregnar a Mãe-Terra com ela em torno do equinócio de primavera; fulgura do auge de sua glória no solstício de verão; resigna-se ao poder do quarto minguante sobre a Grande-Mãe por volta do equinócio de outono e novamente encara a morte e o renascimento na época de Natal.
Esta mitologia de morte e renascimento que engloba apenas os sabás menores, isso é, os solstícios e equinócios, diz respeito à decorrência das quatro estações do ano, o inverno quando o deus-sol nasce, a primavera quando cresce, o verão quando está no ápice, e o outono quando novamente morre para renascer no inverno. Em relação a esta parte mitológica da roda do ano não existe muita complexidade, entretanto esta se faz presente no restante da mitologia, Janet e Stewart continuam a nos explicar:
O tema da fertilidade natural é mais complexo. Envolve duas figuras divinas: o Deus do ano crescente (que aparece amiúde na mitologia como Rei Carvalho) e o Deus do ano minguante (o Rei Azevinho). São os gêmeos claro e escuro, cada um o “outro eu” do outro, rivais eternos que eternamente se conquistam e se sucedem mutuamente. Competem eternamente pelo favorecimento da Grande-Mãe e cada um, no pico de seu reinado semestral, é sacrificialmente unido a ela, morre em seu amplexo e é ressucitado a fim de completar seu reinado. (...) Esse tema, na realidade, trasborda nos sabás menores do Natal e do solstício de verão. No Natal, o Rei Azevinho encerra seu reinado e cede ao Rei Carvalho; no solstício de verão, Rei Carvalho, por sua vez, é desalojado pelo Rei Azevinho.
Tanto Rei Carvalho, quanto Rei Azevinho são, na wicca, representações simbólicas do Deus Cornudo, o consorte da Deusa e que com ela forma o casal divino, como os Farrar complementam, ele é “(...) o Rei Carvalho e o Rei Azevinho, os gêmeos complementares vistos como uma entidade completa.” E que em conjunto com uma grande-mãe formaria a base dos cultos pagãos de bruxaria moderna. Esta idéia foi apregoada principalmente por Margaret Murray em suas obras: O culto das bruxas na Europa ocidental e O deus das feiticeiras, a autora, muito influenciada por Frazer, cria a idéia da bruxaria como um rito de fertilidade primitivo que datava do neolítico e cuja base estaria em um deus de chifres, Duarte nos explica:
(...) ela não seria uma religião centrada numa Grande-Mãe, ao contrário do postulado por Frazer, mas sim baseada no culto a um deus de chifres – Dianus- em cuja figura a Igreja teria baseado a imagem do diabo. Este seria representado pelos adeptos por um Rei-Divino, que se sacrificaria periodicamente. Com a perseguição movida pelo cristianismo, o culto teria se tornado secreto, sendo mantido na obscuridade por seus praticantes durante toda a Idade Média, até ser exposto e combatido pela inquisição (...).
Nas palavras da própria autora, podemos identificar um dos momentos em que esta visão de continuidade de uma crença primitiva fica evidente:
Bruxaria Cerimonial – ou, como eu sugiro, o Culto Diânico, que acolhe as crenças religiosas e os rituais das pessoas conhecidas na época medieval como “Bruxas”. As evidencias mostram que abaixo da religião cristã havia um culto praticado por muitas classes da comunidade, principalmente pelos mais ignorantes ou aqueles das partes menos populosas do país, que pode ser considerado uma antiga religião Europa Ocidental na época pré-cristã.
Essa visão, além de ter sido a responsável por criar na wicca a idéia de sua origem primitiva, cria uma relação identitária com a feitiçaria e bruxaria e, inclusive, com as bruxas mortas durante a inquisição, e dessa forma ao “renascer” desta “antiga religião” a palavra bruxa foi adotada por seus membros, característica que permanece até a atualidade, independendo da inverossimilhança das obras de Murray, que se baseou em relatos inquisitoriais, boa parte sob tortura, para provar sua tese. Em grande parte foi a autora também que construiu a idéia de uma religião incompreendida e julgada: “Os outros ritos, os banquetes e as festas mostravam que se tratava de uma religião alegre e incompreendida pelos inquisidores e reformistas melancólicos que a reprimiam”.
Nos voltando então para o mito em si, compreendemos que a figura do deus é dividida em dois aspectos – rei azevinho e rei carvalho - para montar a lógica da mitologia da roda do ano, que como vimos é um ciclo de morte e renascimento simbólicos para a compreensão das estações do ano, o Rei Azevinho simboliza a parte do ano escura, o outono e o inverno e o Rei Carvalho a parte clara, a primavera e o verão, um nasce no solstício de inverno para reinar a primavera e o verão e o outro nasce no solstício de verão para reinar o outono e inverno.
E assim, uma possível interpretação seria que a mitologia tem seu fim e inicio em Samhain, a transição de outono para inverno, o Rei Azevinho termina seu recolhimento na morte e vai para o mundo dos mortos, que é representado pelo ventre da própria Deusa, lá se transmuta na criança da promessa que nasce em Yule. A Deusa em seu aspecto de Ceifeira se recolhe a ele em seu retiro, o que representa sua descida ao reino das sombras.
Em Yule, o solstício de inverno, nasce à Criança da Promessa, que estava sendo gerada desde Beltane, sob a face de Rei Carvalho. Ocorre então o metafórico destronamento do Rei Azevinho e sua substituição pelo Rei Carvalho, simbolizando o início da metade crescente do ano.
Imbolc, a transição entre inverno e primavera, representa o crescimento da criança da promessa, são os primeiros impulsos de luz depois do inverno, também representa a Deusa que após passar por sua época de Mãe em Yule logo retorna ao seu aspecto de Virgem, como criança, para crescer com o Deus, comemorada nesta época sobre a face de Brigith que representa o fogo em ascensão. Em Ostara, o equinócio de primavera, quando dias e noites possuem a mesma duração, é representado o amadurecimento do Rei Carvalho, que adulto já equilibrou a luz e as trevas. Também representa a fertilidade tanto do Deus, que adulto já pode se reproduzir, quanto da Deusa, que em seu aspecto de virgem cresceu e agora desfruta de sua primeira menstruação, tornando-se fértil.
Em Beltane, a transição de primavera e verão, o Deus e a Deusa férteis se encontram e desfrutam do amor e do prazer, este ritual de fertilidade representa a união ou casamento divino, quando o Rei Carvalho se entrega a Deusa, (representando um sacrifício simbólico), pois essa entrega é necessária para que a deusa engravide e carregue em seu útero a Criança da Promessa - que (re) nasce em Yule -.
Ocorre então Litha, o solstício de verão, o ápice do reinado do Rei Carvalho e das forças solares, e quando este é transmutado em Rei Azevinho, o deus do ano minguante, (morte metafórica do Rei Carvalho que é destronado pela Deus Azevinho, representando o final do ano crescente – verão – e inicio do ano minguante – inverno-).
Em Lammas, a transição entre verão e outono, ocorrem as primeiras colheitas do ano. É quando o Deus, na face de Rei Azevinho, encarnado nas colheitas, morre simbolicamente (no próprio ato de ceifar) e ressurge a fim de gerar alimento na forma de cereais que foram colhidos. Representa o crescimento do estágio minguante do ano, pois os dias estão se encurtando cada vez mais e os primeiros impulsos de trevas depois do Verão se fazem presentes. E também representa a Deusa que, passando novamente por sua face de Mãe, mas agora como a Mãe dos Cereais, torna-se a Ceifeira, que ajuda a colher os grãos e aceita sua maturidade e velhice.
Por fim chega Mabon, o equinócio de Outono, quando o Rei Azevinho equilibra luz e trevas, e começa seu processo de recolhimento e preparação para a morte, que se efetiva em Samhain que é o fim e o inicio do ano.
Este pode ser uma das formas de entender esta mitologia, entretanto o casal Farrar nos adverte:
(...) a colocação da união sacrificial e do renascimento do Rei Carvalho e do Rei azevinho em Bealtaine e Lughnasadh, respectivamente pode parecer um pouco arbitraria. Pelo fato deste ciclo ser de fertilidade, o real espaçamento de seu ritmo varia de região para região; e isso naturalmente porque os calendários de um sítio na região montanhosa da Escócia e de uma vinicula italiana, por exemplo, não mantêm perfeita correspondência entre si. Os dois sacrifícios aparecem em tempos variados na primavera e no outono, de maneira que, ao conceber um ciclo coerente de sabás, era mister fazer uma escolha. Bealtaine parecia a escolha obvia para a união do Rei Carvalho; mas a do Rei Azevinho (mesmo nos limitando aos sabás maiores, como se afigurava adequado) podia ser ou Lughnasadh, ou Samhain (...)
O casal Farrar opta por Lughnasadh, sendo o Rei Azevinho a personificação o Rei cereal, que como vimos ao se sacrificar gera as primeiras colheitas do ano. Eles demonstram sua escolha no diagrama anexo (página ).
Independente das diferenças, escolhas e inverossimilhanças é esta a lógica que dá sentido aos festivais praticados na bruxaria moderna, tendo em mente que esta, mesmo com toda influencia de Frazer e Murray é uma sistematização moderna, e mesmo sob influência de alguns traços do paganismo antigo só pode existir no contexto que a criou, o século XX.
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Referências:
CUNNINGHAN, Scott. Guia essencial da bruxa solitária. São Paulo: Gaia, 1998.
DUARTE, Janluis. Os Bruxos do século XX: Neopaganismo e Invenção de Tradições na Inglaterra do Pós Guerras. Brasília. 2008.
FRAZER, Sir James G. The Golden Bough: a Study in Magic and Religion. London: McMillan & Co., 1992
FARRAR, Janet & Steward. Eigth Sabbats for Witches. Trad. Edson Bini. São Paulo: Anúbis, 1983
HIGGINBOTHAM. Joyce & River. Paganismo: uma introdução da religião centrada na terra. Trad. Ana Carolina Trevisan Camilo. São Paulo: Madras, 2003.
HUTTON, Ronald. The Triumph of the Moon: a history of modern pagan witchcraft. New York: Oxford University Press, 1999.
MURRAY, Margaret. O culto das bruxas na Europa Ocidental. Trad. Getúlio Elias Schanoski Júnior. São Paulo: Madras, 2003.
PRIETO, Claudiney. Wicca para todos. [s. l.]: [s. e.], 2009.
SOUSA, Fátima Nogueira Gonçalves de. Dança e suas Manifestações Culturais. In: BRINCAR,
JOGAR, VIVER: Programa Esporte e Lazer da Cidade - Volume I - nº 01 (Janeiro/2007).
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